Gramática,  Sociedade

Poliamor é errado? Entenda

Hoje em dia, as pessoas reivindicam o direito de coisas que deixariam até a peruca mais antiga da sua avó de cabelo em pé. Longe de ser uma invenção moderna, o poliamor tem ganhado visibilidade nas redes sociais do cotidiano. A literatura está cheia de triângulos amorosos conflituosos que, se fossem vividos sob a filosofia do poliamor, dificilmente teríamos uma ficção envolvente. O que dizer do triângulo machadiano entre Bentinho, Capitu e Escobar, se o protagonista fosse um bem-resolvido praticante de poliamor? Provavelmente perderia metade da graça, devido à construção da mente atormentada do personagem Bentinho.

No entanto, não são aspectos antropológicos nem literários que queremos abordar aqui, mas sim a correção da palavra: O POLIAMOR ESTÁ ERRADO?

Pode-se dizer que SIM e NÂO. E a resposta baseia-se na morfologia, área da ciência linguística que estuda a palavra, sua estrutura e composição.

Sabe-se que os radicais são elementos básicos das palavras que carregam o núcleo da significação. Ao considerar as subpartes dos vocábulos em sua origem, percebe-se uma grande quantidade de radicais gregos e latinos na língua portuguesa. Para gramáticos como Rocha Lima (2011), esses radicais podem ser chamados de corradicais, isso porque eles costumam aglutinar-se a outros radicais para formar palavras.

Cunha e Cintra (2004) afirmam que gramáticos excessivamente puristas condenavam a combinação de radicais de diferentes origens linguísticas:

As formações híbridas são em geral condenadas pelos gramáticos, mas existem algumas tão enraizadas no idioma que seria pueril pretender eliminá-las. (CUNHA; CINTRA, 2004, p. 84)

Tal processo que combina radicais de procedências diferentes é denominado hibridismo. Veja-se os exemplos:

automóvel (grego e latim)

bígamo (latim e grego)

burocracia (francês e grego)

caferana (árabe e tupi)

decímetro (latim e grego)

goiabeira (tupi e português)

monóculo (grego e latim)

neolatino (grego e latim)

De acordo com Bechara (2015), isso ocorre porque o falante assimila os diversos termos como se fossem termos nativos da língua, por isso o hibridismo é tão frequente em nosso idioma.

Contudo, voltemos ao “poliamor”, que chegou até nós por influência do inglês polyamory, na década de 1990. Com a análise dos radicais, tem-se:

poli (grego) = muito, numeroso

amor (latim) = amizade, afeição, paixão

POLIAMOR é grego e latim, o que seria um erro para gramáticos conservadores e eruditos. Para estes, seria mais adequado uma composição de latim + latim ou de grego + grego, tal como se demonstra a seguir:

multi- (do latim “muito”, “abundante”) + -amor (latim) = MULTIAMOR

poli- (grego) + -filia (do grego “amigo”, “amante”) = POLIFILIA

Portanto, a palavra poliamor está errada na visão de teóricos conservadores, mas está correta na concepção de hibridismo dos gramáticos contemporâneos, bem como na percepção de falantes nativos. Obviamente a palavra poliamor é igualmente correta na boca daqueles que a transformam em atos, tendo o seu significado como:

s.m. Convívio intimo, romântico e/ou sexual, concomitante e consensual, entre três ou mais pessoas. (HOUAISS, 2009)

Lembre-se: o que é realmente errado é vigiar e tomar conta da língua e da intimidade alheias.

Prof. Daniel Costa Jr.

Referências

BECHARA, E. Moderna gramática portuguesa. ed. 38. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015.

CUNHA, C.; CINTRA, L. Breve gramática do português contemporâneo. ed. 17. Lisboa: João Sá da Costa, 2004.

Dicionário HOUAISS da língua portuguesa. Disponível em: < https://houaiss.uol.com.br/>. Consulta em 14 jan. 2023.

ROCHA LIMA, C. H. Gramática normativa da língua portuguesa. ed. 49. Rio de Janeiro: José Olympio, 2011.

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