
Leia dois contos ‘fáceis’ de Noite na Taverna
Sabe-se que adolescentes costumam adorar histórias de suspense, terror e mistério. Pensando nisso, desafiei-me a trabalhar alguns contos de temática sombria e gótica nas aulas de língua portuguesa do Ensino Médio. O objetivo seria introduzir o interesse por autores canônicos da literatura brasileira, considerando a predisposição a histórias sombrias e góticas, que jovens geralmente possuem.
Quando alguns profissionais desejam fugir de nomes da literatura universal – tais como Edgar Allan Poe, Bram Stoker, Lovecraft, Lord Byron, Baudelaire – para focarem-se em nomes da língua vernácula, é frequente a recorrência a dois principais autores brasileiros: Álvares de Azevedo, na prosa, e Augusto dos Anjos, na poesia.
Sabendo que Noite na taverna, de Álvares de Azevedo, é a obra de referência no que se refere à prosa gótica e obscura em solo tupiniquim, surge a seguinte questão:
Como abordar uma leitura importante para os vestibulares dos alunos, mas evitando as partes tão polêmicas?
Uma obra recheada de orgias, bebedeiras, prostituição, necrofilia e canibalismo precisa realmente de algum cuidado ao ser abordada. Caso contrário, pareceria um incentivo a essas práticas.
Consciente do problema, logo se me ensejou a tarefa de reavaliar o livro oitocentista. Em cuja reavaliação, localizei dois contos, a meu ver, que parecem relativamente seguros de serem lidos no Ensino Médio.
O primeiro deles apresentarei a seguir:
Gennaro
Atualização ortográfica de Daniel Costa Júnior (2022)
Meurs ou tue!
CORNEILLE
— Gennaro, dormes, ou embebes-te no sabor do ultimo trago do vinho, da última fumaça do teu cachimbo?
— Não: quando contavas tua historia, lembrava-me uma folha da vida, folha seca e avermelhada como as do outono, e que o vento varreu.
— Uma historia?
— Sim: e uma das minhas historias: sabes, Bertram, eu sou pintor, e uma lembrança triste essa que vou revelar, porque e a historia de um velho e de duas mulheres, belas como duas visões de luz.
Godofredo Walsh era um desses velhos sublimes, em cujas cabeças as cãs semelham o diadema prateado do gênio. Velho já, casara em segundas núpcias com uma beleza de vinte anos. Era pintor: diziam uns que este casamento fora um amor artístico por aquela beleza Romana, como que feita ao molde das belezas antigas —outros criam-no compaixão pela pobre moça que vivia de servir de modelo. O fato é que ele a queria como filha — como Laura, a filha única de seu primeiro casamento —Laura, corada como uma rosa, e loira como um anjo.
Eu era nesse tempo moço era aprendiz de pintura em casa de Godofredo. Eu era lindo então! Que trinta anos lá vão! Que ainda os cabelos e as faces me não haviam desbotado como nesses longos quarenta e dois anos de vida! Eu era aquele tipo de mancebo ainda puro do ressumbrar infantil, pensativo e melancólico como o Rafael se retratou no quadro da galeria Barberini. Eu tinha quase a idade da mulher do mestre. — Nauza tinha vinte — e eu tinha dezoito anos.
Amei-a, mas meu amor era puro como meus sonhos de dezoito anos. Nauza também me amava: era um sentir tão puro! Era uma emoção solitária e perfumosa como as primaveras cheias de flores e de brisas que nos embalavam aos céus da Itália.
Como eu o disse — o mestre tinha uma filha chamada Laura. Era uma moça pálida, de cabelos castanhos e olhos azulados; sua tez era branca, e só às vezes, quando o pejo a incendia, duas rosas lhe avermelhavam a face e se destacavam no fundo de mármore. Laura parecia querer-me como a um irmão… Seus risos… seus beijos de criança de quinze anos eram só para mim. À noite, quando eu ia deitar-me, ao passar pelo corredor escuro com minha lâmpada, uma sombra me apagava a luz e um beijo me pousava nas faces, nas trevas.
Muitas noites foi assim.
Uma manhã — eu dormia ainda — o mestre saíra, e Nauza fora à igreja —quando Laura entrou no meu quarto e fechou a porta: deitou-se a meu lado. Acordei —nos braços dela.
O fogo de meus dezoito anos, a primavera virginal de uma beleza, ainda inocente, o seio seminu de uma donzela a bater sobre o meu: isso tudo ao despertar dos sonhos alvos da madrugada, me enlouqueceu…
Todas as manhas Laura vinha a meu quarto…
Três meses passaram assim. Um dia entrou ela no meu quarto e disse-me:
— Gennaro, estou desonrada para sempre… A princípio eu quis-me iludir — já não o posso — estou de esperanças…
Um raio que me caísse aos pés me assustaria tanto.
— E preciso que cases comigo — pai, ouves, Gennaro?
Eu calei-me.
— Não me amas então?
Calei-me ainda.
— Oh! Gennaro, Gennaro!
E caiu no meu ombro desfeita em soluços. Carreguei-a assim fria e fora de si para seu quarto.
Nunca mais tornou a falar-me em casamento.
Que havia de eu fazer? Contar tudo ao pai e pedi-la em casamento? Fora uma loucura… Ele me mataria e a ela: ou pelo menos me expulsaria de sua casa… E Nauza? Cada vez eu a amava mais. Era uma luta terrível essa que se travava entre o dever e o amor, e entre o dever e o remorso.
Laura não me falara mais. Seu sorriso era frio: cada dia tornava-se mais pálida, mas a gravidez não crescia, antes mais nenhum sinal se lhe notava..
O velho levava as noites passeando no escuro. Já não pintava. Vendo a filha que morria aos sons secretos de uma harmonia de morte, que empalidecia cada vez mais, o misérrimo arrancava as cãs.
Eu contudo não esquecera Nauza, nem ela se esquecia de mim. Meu amor era sempre o mesmo: eram sempre noites de esperança e de sede que me banhavam de lágrimas o travesseiro. Só às vezes a sombra de um remorso me passava, mas a imagem dela dissipava todas essas névoas…
Uma noite… foi horrível… vieram chamar-me: Laura morria. Na febre murmurava meu nome e palavras que ninguém podia reter, tão apressadas e confusas lhe soavam. Entrei no quarto dela: a doente conheceu-me. Ergueu-se branca, com a face úmida de um suor copioso: chamou-me. Sentei-me junto do leito dela. Apertou minha mão nas suas mãos frias e murmurou em meus ouvidos:
— Gennaro, eu te perdôo: eu te perdôo tudo… Eras um infame. . . Morrerei. . . Fui uma louca. . . Morrerei… por tua causa… teu filho… o meu… vou vê-lo ainda… mas no céu… Meu filho que matei… antes de nascer…
Deu um grito: estendeu convulsivamente os braços como para repelir uma idéia, passou a mão pelos lábios como para enxugar as últimas gotas de uma bebida, estorceu-se no leito, lívida, fria, banhada de suor gelado, e arquejou. . . Era o último suspiro.
Um ano todo se passou assim para mim. O velho parecia endoidecido. Todas as noites fechava-se no quarto onde morrera Laura: levava ai a noite toda em solidão. Dormia? ah que não! Longas horas eu o escutei no silêncio arfar com ânsia, outras vezes afogar-se em soluços.
Depois tudo emudecia: o silencio durava horas — o quarto era escuro: e depois as passadas pesadas do mestre se ouviam pelo quarto, mas vacilantes como de um bêbedo que cambaleia.
Uma noite eu disse a Nauza que a amava: ajoelhei-me junto dela, beijei-lhe as mãos, reguei seu colo de lágrimas. Ela voltou a face: eu cri que era desdém, ergui-me.
— Então Nauza, tu não me amas, disse eu.
Ela permanecia com o rosto voltado.
— Adeus, pois: perdoai-me se vos ofendi: meu amor é uma loucura, minha vida é uma desesperança — o que me resta? Adeus, irei longe — longe daqui talvez então eu possa chorar sem remorso.
Tomei-lhe a mão e beijei-a.
Ela deixou sua mão nos meus lábios.
Quando ergui a cabeça, eu a vi: ela estava debulhada em lágrimas.
— Nauza — Nauza — uma palavra, tu me amas?
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Tudo o mais foi um sonho: a lua passava entre os vidros da janela aberta, e batia nela: nunca eu a vira tão pura e divina!
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E as noites que o mestre passava soluçando no leito vazio de sua filha, eu as passava no leito dele, nos braços de Nauza.
Uma noite houve um fato pasmoso.
O mestre veio ao leito de Nauza. Gemia e chorava aquela voz cavernosa e rouca: tomou-me pelo braço com força acordou-me, e levou-me de rasto ao quarto de Laura.
Atirou-me ao chão: fechou a porta. Uma lâmpada estava acesa no quarto defronte de um painel. Ergueu o lençol que o cobria. — Era Laura moribunda! E eu macilento como ela tremia como um condenado. A moça com seus lábios pálidos murmurava no meu ouvido…
Eu tremi de ver meu semblante tão lívido na tela: e lembrei-me que naquele dia ao sair do quarto da morta, no espelho dela que estava ainda pendurado a janela, eu me horrorizara de ver-me cadavérico…
Um tremor, um calafrio se apoderou de mim. Ajoelhei-me, e chorei lágrimas ardentes. Confessei tudo: parecia-me que era ela quem o mandava, que era Laura que se erguia dentre os lençóis do seu leito, e me acendia o remorso, e no remorso me rasgava o peito.
Por Deus! Que foi uma agonia!
No outro dia o mestre conversou comigo friamente. Lamentou a falta de sua filha — mas sem uma lágrima: sobre o passado na noite, nem palavra.
Todas as noites era a mesma tortura, todos os dias a mesma frieza.
O mestre era sonâmbulo…
E pois eu não me cri perdido…
Contudo lembrei-me que uma noite, quando eu saia do quarto de Laura com o mestre, no escuro vira uma roupa branca passar-me por perto, roçaram-me uns cabelos soltos, e nas lájeas do corredor estalavam umas passadas tímidas de pés nus Era Nauza que tudo vira e tudo ouvira, que se acordara e sentira minha falta no leito, que ouvira esses soluços e gemidos, e correra para ver…
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Uma noite, depois da ceia, o mestre Walsh tomou sua capa e uma lanterna, e chamou-me para acompanhá-lo. Tinha de sair fora da cidade e não queria ir só. Saímos juntos: a noite era escura e fria. O outono desfolhara as arvores e os primeiros sopros do inverno rugam nas folhas secas do chão. Caminhamos juntos muito tempo: cada vez mais nos entranhávamos pelas montanhas, cada vez o caminho era mais solitário. O velho parou. Era na fralda de uma montanha. À direita o rochedo se abria num trilho: à esquerda as pedras soltas por nossos pés a cada passada se despegavam e rolavam pelo despenhadeiro, e instantes depois se ouvia um som como de água onde cai um peso…
A noite era escuríssima. Apenas a lanterna alumiava o caminho tortuoso que seguíamos. O velho lançou os olhos à escuridão do abismo e riu-se.
— Espera-me ai, disse ele — já venho.
Godofredo tomou a lanterna e seguiu para o cume da montanha: eu sentei-me no caminho a sua espera: vi aquela luz ora perder-se, ora reaparecer entre os arvoredos nos ziguezagues do caminho. Por fim vi-a parar. O velho bateu a porta de uma cabana: a porta abriu-se. Entrou. O que aí se passou nem o sei: quando a porta abriu-se de novo uma mulher lívida e desgrenhada apareceu com um facho na mão.
A porta fechou-se. Alguns minutos depois o mestre estava comigo.
O velho assentou a lanterna num rochedo, despiu a capa e disse-me:
— Gennaro, quero contar-te uma história. E um crime, quero que sejas juiz dele. Um velho era casado com uma moça bela. De outras núpcias tinha uma filha bela também. Um aprendiz — um miserável que ele erguera da poeira, como o vento às vezes ergue uma folha, mas que ele podia reduzir a ela quando quisesse…
Eu estremeci, os olhares do velho pareciam ferir-me.
— Nunca ouviste essa história, meu bom Gennaro?
— Nunca — disse eu a custo e tremendo.
— Pois bem — esse infame desonrou o pobre velho: traiu-o como Judas ao Cristo.
— Mestre, perdão!
— Perdão! E perdoou o malvado ao pobre coração do velho?
— Piedade!
— E teve ele dó da virgem, da desonra, da infanticida?
— Perdão! — e perdoou o malvado ao pobre coração do velho?
— Piedade!
— E teve ele dó da virgem, da desonra, da infanticida?
— Ah! — gritei.
— Que tens? Conheces o criminoso?
A voz de escárnio dele me abafava.
— Vês, pois, Gennaro — disse ele mudando de tom —, se houvesse um castigo pior que a morte, eu to daria. Olha esse despenhadeiro! É medonho! se o visses de dia, teus olhos se escureceriam e ai rolarias talvez — de vertigem! É um túmulo seguro: e guardará o segredo, como um peito o punhal. Só os corvos irão lá ver-te, só os corvos e os vermes. E pois, se tens ainda no coração maldito um remorso, reza tua ultima oração: mas seja breve. O algoz espera a vitima: a hiena tem fome de cadáver…
Eu estava ali pendente junto à morte. Tinha só a escolher o suicídio ou ser assassinado. Matar o velho era impossível. Uma luta entre mim e ele fora insana. Ele era robusto, a sua estatura alta, seus braços musculosos me quebrariam como o vendaval rebenta um ramo seco. Demais, ele estava armado. Eu — eu era uma criança débil: ao meu primeiro passo ele me arrojaria da pedra em cujas bordas eu estava… Só me restaria morrer com ele — arrastá-lo na minha queda. Mas para quê?
E curvei-me no abismo: tudo era negro: o vento lá gemia embaixo nos ramos desnudos, nas urzes, nos espinhais ressequidos, e a torrente lá chocalhava no fundo escumando nas pedras.
Eu tive medo. Orações, ameaças, tudo seria debalde.
— Estou pronto — disse.
O velho riu-se: infernal era aquele rir dos seus lábios estalados de febre. Só vi aquele riso. Depois foi uma vertigem… o ar que sufocava, um peso que me arrastava, como naqueles pesadelos em que se cai de uma torre e se fica preso ainda pela mão, mas a mão cansa, fraqueja, sua, esfria… Era horrível: ramo a ramo, folha por folha os arbustos me estalavam nas mãos, as raízes secas que saiam pelo despenhadeiro estalavam sobre meu peso e meu peito sangrava nos espinhais. A queda era muito rápida… De repente não senti mais nada… Quando acordei estava junto a uma cabana de camponeses que me tinham apanhado junto da torrente, preso nos ramos de uma azinheira gigantesca que assombrava o rio.
Era depois de um dia e uma noite de delírios que eu acordara. Logo que sarei, uma idéia me veio: ir ter com o mestre. Ao ver-me salvo assim daquela morte horrível, pode ser que se apiedasse de mim, que me perdoasse, e então eu seria seu escravo, seu cão, tudo o que houvesse mais abjeto num homem que se humilha — tudo! — contanto que ele me perdoasse. Viver com aquele remorso me parecia impossível. Parti, pois: no caminho topei um punhal. Ergui-o: era o do mestre. Veio-me então uma idéia de vingança e de soberba. Ele quisera matar-me, ele tinha rido a minha agonia, e eu havia ir chorar-lhe ainda aos pés para ele repelir-me ainda, cuspir-me nas faces, e amanhã procurar outra vingança mais segura? Eu humilhar-me quando ele me tinha abatido! Os cabelos me arrepiaram na cabeça, e suor frio me rolava pelo rosto.
Quando cheguei à casa do mestre achei-a fechada. Bati — não abriram. O jardim da casa dava para a rua: saltei o muro: tudo estava deserto e as portas que davam para ele estavam também fechadas. Uma delas era fraca: com pouco esforço arrombei-a. Ao estrondo da porta que caiu só o eco respondeu nas salas. Todas as janelas estavam fechadas e contudo era dia claro fora. Tudo estava escuro: nem uma lamparina acesa. Caminhei tateando ate a sala do pintor. Cheguei lá — abri as janelas e a luz do dia derramou-se na sala deserta. Cheguei então ao quarto de Nauza — abri a porta e um bafo pestilento corria daí. O raio da luz bateu em uma mesa. — Junto estava uma forma de mulher com a face na mesa, e os cabelos caídos: atirado numa poltrona um vulto coberto com um capote. Entre eles um copo onde se depositara um resíduo polvilhento. Ao pé estava um frasco vazio. Depois eu o soube — a velha da cabana era uma mulher que vendia veneno: era ela de certo que o vendera, porque o pó branco do copo parecia sê-lo…
Ergui os cabelos da mulher, levantei-lhe a cabeça. Era Nauza, mas Nauza cadáver, já desbotada pela podridão. Não era aquela estátua alvíssima de outrora, as faces macias e colo de neve. Era um corpo amarelo… Levantei uma ponta da capa do outro — o corpo caiu de bruços com a cabeça para baixo — ressoou no pavimento o estalo do crânio. Era o velho — morto também e roxo e apodrecido: eu o vi — da boca lhe corria uma escuma esverdeada.
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Johann
Atualização ortográfica: Daniel Costa Júnior (2022)
Pour quoi? c’est que mon coeur au milieu des délices
D’un souvenir jaloux constamment oppressé
Froid au bonheur présent, va chercher ses supplices
Dans l’avenir et le passé.
Alexandre Dumas.
— Agora a minha vez! Quero lançar também uma moeda em vossa urna: é o cobre azinhavrado do mendigo: pobre esmola por certo!
Era em Paris, num bilhar. Não sei se o fogo do jogo me arrebatara, ou se o kirsch e o curaçao me queimaram demais as ideias… Jogava contra mim um moço: chamava-se Artur.
Era uma figura loura e mimosa como a de uma donzela. Rosa infantil lhe avermelhava as faces: mas era uma rosa de cor desfeita. Leve buço lhe sombreava o lábio, e pelo oval do rosto uma penugem doirada lhe assomava como a felpa que rebuça o pêssego.
Faltava um ponto a meu adversário para ganhar. A mim, faltavam-me não sei quantos: sei só que eram muitos, e pois requeria-se um grande sangue frio, e muito esmero no jogar.
Soltei a bola. Nessa ocasião o bilhar estremeceu… O moço loiro, voluntariamente ou não, se encostara ao bilhar… A bola desviou-se, mudou de rumo: com o desvio dela perdi… A raiva levou-me de vencida. Adiantei-me para ele. A meu olhar ardente o mancebo sacudiu os cabelos loiros e sorriu como de escárnio.
Era demais! Caminhei para ele: ressoou uma bofetada. O moço convulso caminhou para mim com um punhal, mas nossos amigos nos sustiveram.
— Isso é briga de marujo. O duelo, eis a luta dos homens de brio.
O moço rasgou nos dentes uma luva e atirou-ma a cara. Era insulto por insulto; lodo por lodo: tinha de ser sangue por sangue.
Meia hora depois tomei-lhe a mão com sangue frio e disse-lhe no ouvido:
— Vossas armas, senhor?
— Sabê-las-eis no lugar.
— Vossas testemunhas?
— A noite e minhas armas.
— A hora?
— Já.
— O lugar?
— Vireis comigo… Onde pararmos aí será o lugar…
— Bem, muito bem: estou pronto, vamos.
Dei-lhe o braço e saímos. Ao ver-nos tão frios a conversar creram uma satisfação. Um dos assistentes contudo entendeu-nos.
Chegou a nós e disse:
— Senhores, não há pois meio de conciliar-vos?
Nós sorrimos ambos.
— É uma criançada, tornou ele.
Nós não respondemos.
— Se precisardes de uma testemunha, estou pronto.
Nós nos curvamos ambos.
Ele entendeu-nos: viu que a vontade era firme: afastou-se.
Nós saímos.
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Um hotel estava aberto. O moço levou-me para dentro.
— Moro aqui, entrai, disse-me.
Entramos.
— Senhor, disse ele, não há meio de paz entre nós: um bofetão e uma luva atirada às faces de um homem saco nódoas que só o sangue lava. É pois um duelo de morte.
— De morte, repeti como um eco.
— Pois bem: tenho no mundo só duas pessoas — minha mãe e… Esperei um pouco.
O moço pediu papel, pena e tinta. Escreveu: as linhas eram poucas. Acabando a carta deu-ma a ler.
— Vede, não é uma traição, disse.
— Artur, creio em vós: não quero ler esse papel.
Repeli o papel. Artur fechou a carta, selou o lacre com um anel que trazia no dedo. Ao ver o anel uma lágrima correu-lhe na face e caiu sobre a carta.
— Senhor, sois um homem de honra. Se eu morrer, tomai esse anel: no meu bolso achareis uma carta: entregareis tudo a… Depois dir-vos-ei a quem…
— Estais pronto? perguntei.
— Ainda não! antes de um de nos morrer e justo que brinde o moribundo ao último crepúsculo da vida. Não sejamos Abissínios: demais, o sol no cinábrio do poente ainda e belo.
O vinho do Reno correu em águas de ouro nas taças de cristal verde. O moço ergueu-se.
— Senhor, permita que eu faça uma saúde convosco.
— A quem?
— É um mistério… é uma mulher, porque o nome daquela que se apertou uma vez nos lábios, a quem se ama, é um segredo. Não a fareis?
— Seja como quiserdes, disse eu.
Batemos os copos. O moço chegou à janela. Derramou algumas gotas de vinho do Reno à noite. Bebemos.
— Um de nós fez a sua última saúde, disse ele. Boa noite para um de nos… bom leito e sonos sossegados para o filho da terra!
Foi a uma secretária, abriu-a: tirou duas pistolas.
— Isto é mais breve, disse ele. Pela espada é mais longa a agonia. Uma delas esta carregada, a outra não. Tirá-las-emos à sorte. Atiraremos à queima-roupa.
— É um assassinato.
— Não dissemos que era um duelo de morte, que um de nos devia morrer?
— Tendes razão. Mas dizei-me: onde iremos?
— Vinde comigo. Na primeira esquina deserta dos arrabaldes. Qualquer canto de rua é bastante sombrio para dois homens dos quais um tem de matar o outro.
À meia-noite estávamos fora da cidade. Ele pôs as duas pistolas no chão.
— Escolhei, mas sem tocá-las.
Escolhi.
— Agora vamos, disse eu.
— Esperai, tenho um pressentimento frio e uma voz suspirosa me geme no peito. Quero rezar… é uma saudade por minha mãe.
Ajoelhou-se. À vista daquele moço de joelhos — talvez sobre um túmulo — lembrei-me que eu também tinha mãe e uma irmã… e que eu as esquecia. Quanto a amantes, meus amores eram como a sede dos cães das ruas: saciavam-se na água ou na lama. Eu só amara mulheres perdidas.
— É tempo, disse ele.
Caminhamos frente a frente. As pistolas se encostaram nos peitos. As espoletas estalaram, um tiro só estrondou, ele caiu quase morto…
— Tomai, murmurou o moribundo e acenava-me para o bolso.
Atirei-me a ele. Estava afogado em sangue. Estrebuchou três vezes e ficou frio… Tirei-lhe o anel da mão. Meti-lhe a mão no bolso como ele dissera. Achei dois bilhetes.
A noite era escura: não pude lê-los.
Voltei à cidade. À luz baça do primeiro lampião vi os dois bilhetes. O primeiro era a carta para sua mãe. O outro estava aberto, li:
“A uma hora da noite na rua de… n° 60, 1° andar, acharás a porta aberta.
Tua G.”
Não tinha outra assinatura.
Eu não soube o que pensar. Tive uma ideia: era uma infâmia.
Fui à entrevista. Era no escuro. Tinha no dedo o anel que trouxera do morto… Senti uma mãozinha acetinada tomar-me pela mão, subi. A porta fechou-se. Foi uma noite deliciosa! A amante do loiro era virgem! Pobre Romeu! Pobre Julieta! Parece que essas duas crianças levavam a noite em beijos infantis e em sonhos puros!
(Johann encheu o copo: bebeu-o, mas estremeceu.)
Quando eu ia sair, topei um vulto à porta.
— Boa noite, cavalheiro… eu vos esperava há muito.
Essa voz pareceu-me conhecida. Porém eu tinha a cabeça desvairada…
Não respondi: o caso era singular.
Continuei a descer, o vulto acompanhou-me. Quando chegamos à porta vi luzir a folha de uma faca. Fiz um movimento e a lamina resvalou-me no ombro. A luta fez-se terrível na escuridão. Eram dois homens que se não conheciam, que não pensavam talvez se terem visto um dia à luz, e que não haviam mais se ver porventura ambos vivos.
O punhal escapou-lhe das mãos, perdeu-se no escuro: subjuguei-o. Era um quadro infernal, um homem na escuridão abafando a boca do outro com a mão, sufocando-lhe a garganta com o joelho, e a outra mão a tatear na sombra procurando um ferro.
Nessa ocasião senti uma dor horrível: frio e dor me correram pela mão. O homem morrera sufocado, e na agonia me enterrara os dentes pela carne. Foi a custo que desprendi a mão sanguenta e descarnada da boca do cadáver.
Ergui-me.
Ao sair tropecei num objeto sonoro. Abaixei-me para ver o que era. Era uma lanterna furta-fogo. Quis ver quem era o homem. Ergui a lâmpada… O último clarão dela banhou a cabeça do defunto… e apagou-se…
Eu não podia crer: era um sonho fantástico toda aquela noite. Arrastei o cadáver pelos ombros levei-o pela laje da calçada até ao lampião da rua, levantei-lhe os cabelos ensanguentados do rosto… (Um espasmo de medo contraiu horrivelmente a face do narrador… tomou o copo, foi beber… os dentes lhe batiam como de frio… o copo estalou-lhe nos lábios).
Aquele homem — sabei-lo!?… era do sangue do meu sangue, era filho das entranhas de minha mãe como eu… era meu irmão! Uma ideia passou ante meus olhos como um anátema. Subi ansioso ao sobrado. Entrei. A moca desmaiara de susto ouvindo a luta. Tinha a face fria como o mármore. Os seios nus e virgens estavam parados e gélidos como os de uma estátua… A forma de neve eu a sentia meio nua entre os vestidos desfeitos, onde a infâmia acelera a nódoa de uma flor perdida.
Abri a janela, levei-a ate aí…
Na verdade que sou um maldito!
Olá, Archibald, dai-me um outro copo, enchei-o de cognac, enchei-o até a borda! Vede!… sinto frio, muito frio… tremo de calafrios e o suor me corre nas faces! Quero o fogo dos espíritos! a ardência do cérebro ao vapor que tonteia… quero esquecer!
— Que tens, Johann? tiritas como um velho centenário!
— O que tenho? o que tenho? Não o vedes, pois? Era minha irmã!…
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